Levei com um feitiço na boca porque a minha irmã decidiu contar à mãe que tinha um namorado. Eu disse não. A mãe não entenderia.
Fisgado?
Ainda bem! Era essa a intenção...
O Primeiro Capítulo, talvez o mais importante de todos os capítulos, é um ponto crucial da sua história. É com este capítulo que, usando diferentes técnicas, vai captar a atenção dos seus leitores.
Aqui os "Primeiros" são essenciais. A Primeira Frase, o Primeiro Parágrafo e o Primeiro Capítulo têm que ser estruturados de forma a fazerem a introdução orgânica do enredo e do seu mundo.
Segundo a votação que criei no Twitter, tanto o Anzol como o Prenúncio, estão no topo das prioridades neste momento da nossa narrativa. Apenas 1 em 10 pessoas considera a Exposição vital para os momentos introdutórios do texto.
Primeira Frase (ou Anzol)
A primeira linha dos seus livros será um ponto de dúvida, existencial e profissional, onde muitos se questionam se estão a fazer as coisas bem. É aqui que a sua veia de escritor têm que vir ao de cima.
Para evitar alguma (muita!) frustração, deixo alguns conselhos e perguntas para fazer à sua narrativa e à sua Primeira Frase, de modo a fisgar os seus leitores.
Comecemos por analisar algumas Primeiras Frases famosas.
Entendo que sinta a vontade de começar todas as histórias por "Era uma vez..." mas deve resistir arduamente pois esse inicio é o mais usado e mais cliché de sempre. A não ser que tenha uma versão muito original, evite esta frase.
(Sim, sim, eu sei que é a imagem do título)
Chame-me Ishmael. - Moby Dick por Herman Melville
Se não tem nada muito pormenorizado a dizer use a forma simples de Moby Dick. Ao deixar apenas o nome da personagem (e o que parece ser o narrador) no ar, levanta imediatamente as perguntas "Quem é este Ishmael?" e "Porque me devo importar?". Cria interesse e mistério levando à consequente pergunta "Porque é que o autor decidiu contar a história desta personagem em específico?"
Num buraco no chão, vivia um Hobbit. - The Hobbit por JRR Tolkien
Este é um clássico da Fantasia. Embora, segundo os padrões da escrita dos dias de hoje, Tolkien não seja o melhor dos exemplos em certos pontos, esta primeira linha do seu primeiro livro sobreviveu ao teste do tempo. É simples, mas ao mesmo tempo, complexa.
Quando a lemos, a primeira pergunta que fazemos é "O que é um Hobbit e porque é que vive num buraco no chão?". Com o nome Hobbit, Tolkien desperta a nossa curiosidade e ao mesmo tempo começa o seu Worldbuilding.
O Homem de Preto fugiu pelo deserto, e o Pistoleiro seguiu-o. - Pistoleiro por Stephen King
A grande mente do Horror, escolheu apresentar-nos o Antagonista e o Protagonista, no meio de uma ação fundamental para narrativa. Com esta introdução, o autor deixa-nos pensar "Quem são esta personagens?", "Como são relacionadas?" e "O que fez o Homem de Preto ao Pistoleiro, para estar a fugir dele?".
O objetivo aqui é que puxe o seu leitor imediatamente para o texto. Foque-se numa só coisa, como o tema, o cenário, a relação entre personagens, mas não disperse.
Primeiro Parágrafo
O Primeiro Parágrafo pode ser também parte do Anzol como n'O Grande Gatsby (F. Scott Fitzgerald) ou Um Conto de Duas Cidades (Charles Dickens).
Pessoalmente, prefiro uma frase, mesmo que longa, a um parágrafo inteiro, no entanto, alguns dos mais icónicos começos são formulados assim.
Aqui temos um pedaço de texto maior, com que trabalhar, onde podemos responder a algumas perguntas (não todas!) que a primeira frase levante.
Tolkien, após a icónica primeira frase, esclarece o leitor sobre o cenário:
Num buraco no chão, vivia um Hobbit. Não um porco, sujo e húmido buraco, cheio de restos de minhocas e com cheiro a lodo, nem um seco, vazio e arenoso, sem algo para se sentar ou para comer: era um burao de Hobbit, e isso significava conforto.
E Herman Melville, ou melhor, Ishmael introduz a sua personagem ao leitor e fala sobre coisas que apelam a todos os seres humanos, principalmente, a vontade de partir para o mar para fugir da vida que levam em terra, por uma razão ou por outra.
Alguns anos atrás — não importa quantos, precisamente — tendo pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e nada de especial que me interessasse em terra, pensei em navegar um pouco e ver a parte aquática do mundo. É uma maneira que tenho de expulsar o baço e regular a circulação. Sempre que me vejo a ficar triste com a boca; sempre que é um novembro húmido e chuvoso na minha alma; sempre que me vejo parar involuntariamente diante de armazéns de caixões e fazendo a parte de trás de cada funeral que encontro; e especialmente sempre que minha hipoglicemia me leva a melhor, que requer um forte princípio moral para me impedir de ir, deliberadamente, para a rua e derrubar metodicamente o chapéu das pessoas - então, acho que é hora de ir para o mar o mais rápido possível. Este é o meu substituto para a pistola e a bola. Com um floreio filosófico, Cato se lança sobre sua espada; eu calmamente vou para o navio. Não há nada surpreendente nisto. Se eles soubessem disso, que quase todos os homens em seu grau, numa vez ou noutra, nutrem quase os mesmos sentimentos em relação ao oceano que eu.
Primeiro Capítulo
Chegamos então ao que importa e que dá o nome ao artigo de hoje.
O Primeiro Capítulo, muito à imagem da Primeira Frase e do Primeiro Parágrafo, acarreta uma responsabilidade enorme: mostrar todo o potencial do seu livro.
É nele que mostrará qual o Status Quo, o Cenário, algum Worldbuilding, as Personagens, o Tema, etc, etc...
Muito em que pensar, quando escrever o primeiro capítulo e por isso deixo uma ordem rápida de como devem organizar esses componentes, dado que por si só, têm artigos que lhes são dedicados.
Deve estruturar o Primeiro Capítulo assim:
Primeira Frase ou Linha - onde introduz o Gancho, para puxar o leitor
Primeiro Parágrafo - Suporte ao Gancho e primeira Exposição.
Status Quo - Mostrar onde se encontra o Protagonista no momento, seja fisica, psicológica ou socialmente. Aqui uso um método onde mostro a personagem em três situações distintas, Trabalho, Casa e Lazer. Mais sobre Plot Beats siga o link.
Tema - Algures por esta altura deve mostrar o seu Tema e, se conseguir, o Tom.
Incidente Incitador - Como final de Primeiro Parágrafo, acho que este servirá como um luva, pois tráz consigo uma mudança no Status Quo e catapulta o Protagonista para o Enredo.
Prenúncio e Exposição
Algures no caminho, irei fazer um artigo sobre os mesmos, daí deixar só uma pequena nota sobre as suas funções no Primeiro Capítulo.
Prenúncio
Mecanismos que ajudam o escritor a substanciar qualquer decisão que mais tarde tomará na narrativa. Pode ser descrever um Objeto, com o qual o protagonista derrota o Antagonista (Arma de Chekov), uma Ação que leva à descoberta do assassino do Rei, ou mesmo uma Profecia, que é auto-explicativa.
O Prenúncio ajuda o autor a dar uma Recompensa Satisfatória ao leitor, sendo necessária para tornar eventos imprevistos credíveis.
Exposição
A Exposição, essa arma tão preciosa para o Worldbuilding, deve ser tratada com cuidado. De menos, poderá falhar em dar ao texto o sumo das suas páginas, e não imergir o leitor, após este ser fisgado pelo Anzol. De mais, e correrá o risco de tornar o seu livro denso e cheio de descrições, como as 10 páginas a descrever o palacete d'Os Maias de Eça de Queirós, perdendo também a atenção do seu leitor. A isto chamamos Descarga de Exposição.
O meu conselho é que a vá introduzida em bocados pequenos e mastigáveis, intercalando-a com o resto dos componentes que integram a sua narrativa.
Exemplo Prático
No início deste artigo, coloquei uma Primeira Frase por mim inventada. Para que consiga perceber os conceitos que aqui falei, tentarei construir uma narrativa completamente inventada.
Levei com um feitiço na boca porque a minha irmã decidiu contar à mãe que tinha um namorado. Eu disse não. A mãe não entenderia.
Várias perguntas aparecem quando analiso a primeiro frase:
- Quem?
- Magia?
- Relação com a irmã?
- Porque é que a mãe não entenderia uma coisa tão banal?
Levei com um feitiço na boca porque a minha irmã decidiu contar à mãe que tinha um namorado. Eu disse não. A mãe não entenderia. Nem o resto da sociedade.
Além disso, não me apetecia ter que ir ao templo, desfilar pelo centro da vila, toda aperaltada, com os Druidas a babarem-se por mim.
Esse tempos estavam no passado, quando ainda não tinha deixado a Escola de Feitiçaria.
Com este primeiro parágrafo, consegui esticar a Primeira Frase, continuando a responder à perguntas levantadas nela, e levantando novas perguntas.
- Que sociedade é esta que não entende um namoro entre um homem e uma mulher?
- Quem são os Druidas? E porque se babariam por ela? Será bem parecida?
Escola de Feitiçaria? Porque a deixou?
Ponha pequena trechos de Exposição, interligados com as emoções da personagem, e terá algo fluído e bem construído.
Daqui poderia continuar, adotando as estratégias acima enumeradas.